A apropriação da esperança<br>e da vida

António santos

Num cé­lebre dis­curso de Ja­neiro de 1974, o pre­si­dente dos EUA, Ro­nald Re­agan des­crevia, apo­teó­tico, o fu­turo do ca­pi­ta­lismo: «Vamos ser uma ci­dade no topo de uma co­lina. Os olhos de todo o mundo es­tarão sobre nós (...) os ame­ri­canos vi­verão mais do que os ci­da­dãos de qual­quer outra nação e a nossa es­pe­rança média de vida será a in­veja do mundo».

Vol­vidos 41 anos sobre a pro­fecia, muitos tra­ba­lha­dores ame­ri­canos não estão a viver mais, mas cada vez menos, re­vela um es­tudo pu­bli­cado este mês pelas Aca­de­mias Na­ci­o­nais das Ci­ên­cias, En­ge­nharia e Me­di­cina (NAS). Se­gundo os in­ves­ti­ga­dores, entre 1980 e 2010, a es­pe­rança média de vida dos 30 mi­lhões de ho­mens es­tado-uni­denses mais po­bres caiu de 76,6 anos para 71,1. Já para 30 mi­lhões de mu­lheres da mesma con­dição, a es­pe­rança média de vida caiu, no mesmo pe­ríodo, de 82,3 para 78,3 anos: menos quatro anos de vida. In­ver­sa­mente, os ho­mens mais ricos do país (1% da po­pu­lação), pas­saram a viver, em média, mais sete anos, pas­sando de uma es­pe­rança de 81,7 para 88,8 anos. Na mesma es­teira, a es­pe­rança média de vida das mu­lheres mais ricas re­gistou uma su­bida de 86,2 para 91,9 anos.

Parir e voltar ao tra­balho

O au­mento da es­pe­rança média de vida é um in­di­cador que muitos as­so­ciam au­to­ma­ti­ca­mente ao de­sen­vol­vi­mento na­tural das ci­ên­cias e da tec­no­logia quando, na ver­dade, de na­tural não tem nada e de au­to­má­tico menos ainda. Di­fe­ren­te­mente, a evo­lução deste in­di­cador está in­trin­se­ca­mente li­gada ao pro­gresso e re­tro­cesso so­cial das so­ci­e­dades.

Esta ideia é par­ti­cu­lar­mente vi­sível nos EUA, onde não só os avanços da me­di­cina têm sido cres­cen­te­mente res­trin­gidos a quem os pode pagar, como, por outro lado, quem os pode pagar tem-se li­te­ral­mente apro­priado de anos de vida dos tra­ba­lha­dores mais po­bres. Os cerca de 60 mi­lhões de tra­ba­lha­dores es­tado-uni­denses (25% da po­pu­lação) que cada ano vivem menos anos são ví­timas dos su­ces­sivos cortes nos planos pú­blicos de as­sis­tência mé­dica como o Me­di­care, o Me­di­caid ou o Planned Pa­renthood. Num país onde a saúde é um mero bem tran­sac­ci­o­nável, as mu­lheres, que re­cebem em média menos 18 por cento do que os ho­mens, têm um acesso à saúde pro­por­ci­o­nal­mente in­fe­rior. Re­corde-se que nos EUA (um entre quatro países do mundo sem li­cença de ma­ter­ni­dade re­mu­ne­rada) 25 por cento das mu­lheres re­gressa ao tra­balho duas se­manas após o parto en­quanto sete por cento volta no dia se­guinte.

Para onde vão os anos per­didos?

Há uma au­tên­tica trans­fe­rência de anos de vida da classe ex­plo­rada para a classe ex­plo­ra­dora. Se­gundo o es­tudo, a prin­cipal causa para os es­tado-uni­denses mais po­bres mor­rerem cada vez mais cedo é o tra­balho: de­ma­si­adas horas de tra­balho causam, só por si, pro­blemas de saúde, mas são também im­pe­di­tivas de um es­tilo de vida sau­dável. Quem tra­balha 12 horas por dia não tem tanto tempo para pra­ticar exer­cício fí­sico, co­zi­nhar re­fei­ções va­ri­adas, des­cansar, con­viver e cul­tivar-se. Com efeito, os tra­ba­lha­dores dos EUA, cuja pro­du­ti­vi­dade au­mentou 400 por cento desde 1950, tra­ba­lham, hoje em dia, uma média de 47 horas se­ma­nais per­dendo, em média, meia hora para chegar di­a­ri­a­mente ao em­prego. Os EUA são o único país in­dus­tri­a­li­zado sem li­mi­ta­ções à quan­ti­dade de horas ex­tra­or­di­ná­rias que um tra­ba­lhador pode fazer e também o único onde nunca é obri­ga­tório tirar fé­rias. Os tra­ba­lha­dores es­tado-uni­denses que gozam fé­rias tiram, em média, so­mente 13 dias por ano.

A carga de tra­balho que está a matar os tra­ba­lha­dores mais po­bres é o se­gredo por de­trás do au­mento da es­pe­rança média de vida dos es­tado-uni­denses mais ricos. É com tra­balho ex­plo­rado que os um por cento mais ricos ga­rantem para si pró­prios os anos de vida que negam aos 25 por cento mais po­bres. Afinal, a «ci­dade no topo de uma co­lina» de que Re­agan fa­lava é só um con­do­mínio pri­vado.




Mais artigos de: Internacional

Colômbia perto da paz

O pre­si­dente co­lom­biano e o Chefe do Es­tado Maior Cen­tral das FARC-EP anun­ci­aram em Ha­vana, dia 23, que um acordo de paz po­derá ser as­si­nado no prazo má­ximo de seis meses.

Papa apela à paz

A deslocação do Papa Francisco a Cuba e os EUA, de 19 a 28 de Setembro, incluiu uma intervenção na ONU, na sexta-feira, 25, em que instou os 160 chefes de Estado e de governo presentes em Nova Iorque a empenhar os seus esforços para libertar o planeta de todas as armas de...